A ética e a face do outro J. B. Libanio O Tempo 30 de março de 2008 Na solidão do eu, não existe ética. Enquanto permanecemos centrados em nós mesmos, não nos aflora nenhuma provocação ética. Regemos a orquestra da vida segundo a partitura de nossos interesses, desejos, sonhos. Moldamos a realidade à nossa imagem e semelhança. Entramos no Palácio dos Espelhos em que a nossa própria figura se multiplica ao infinito. Tudo começa e termina em nós mesmos. Reina o indivíduo sobre a pessoa, o próprio sobre o alheio. Realiza-se o veredicto de Mrs. Thatcher: Não existe essa coisa de sociedade, o que há e sempre haverá são indivíduos. Desde que o outro me olha, sou responsável por ele, observa Levinas. A face do outro assume o caráter sagrado de quem nos acorda do sono individualista. Nasce a ética. Estabelece-se o princípio da alteridade na gestação do nosso modo de proceder. Já não fazemos única e exclusivamente o que nos apetece segundo o bel-prazer. Interfere a face do outro que nos questiona, nos interpela. Caminhamos sorridentes pela rua, bem almoçados, e, de repente, um mendigo se nos apresenta. A ética da satisfação do apetite primeiro do comer, que nunca nos perturbara o sono, grita no rosto faminto daquele outro plantado diante de nós. Por que temos o direito sagrado da saciar-nos a fome e àquele pobre se lho nega? Que responsabilidade assumimos diante de tal situação? Todo olhar desperta-nos para a responsabilidade. Aquele que acende na noite da fome do pobre interpela-nos ainda mais fortemente. A sociedade atual manifesta traço de crueldade, ao tornar a pobreza invisível. Cobre com espesso véu a presença do pobre. Isola-o em favelas e afasta-o para o mais longe possível do alcance da vista dos aquinhoados de muitos bens. Estes se trancam em condomínios fechados para não o ve. Some a face do outro. Apaga-se a ética. Vale o provérbio italiano: longe dos olhos, longe do coração. E o coração funciona como a sede da ética. Se nos distanciamos do outro, ao viver unicamente no meio de caras iguais, que ostentam a mesma riqueza, a nossa sensibilidade e responsabilidade pelos necessitados diluem. A planície da identidade dos que comungam dos mesmos interesses e benesses impede que se veja a irregularidade distinta da pobreza. Sem o diferente do outro, a vida unicamente entre os mesmos silencia qualquer inquietação ética. Faz irromper o grito ético o desfile diário dos excluídos e marginalizados, vindos das infinitas senzalas, que teimam em vir acordar o sono alienado dos senhores da Casa Grande. Enquanto houver tal choque a ética social tem chance de nascer. Mas o dia em que o poder ocultar definitiva e mentirosamente as faces diferentes do pobre, o futuro humano da sociedade corre risco de perder-se em grotescas formas de injustiça social. |